Sem dúvida, a safra 1990 deixou um lugar na história, pois em quase todas as regiões vinícolas do planeta os resultados foram muito bons. Já escrevi aqui um artigo a respeito: 1990: a safra mundial.
Recentemente, participei de uma prova com seis grandes vinhos ’90, de diferentes regiões, colocados aos pares visando um “embate” no sentido de definir a preferência entre os felizardos por um deles a cada round. A seguir, detalho um pouco sobre a degustação.
Primeiro round: Borgonha X Piemonte
Há algo em comum entre essas duas regiões – a francesa Borgonha e a italiana Piemonte –, particularmente entre seus vinhos tintos? Sim, muito mais do que poderíamos supor. Os tintos da Borgonha e os Barolos e Barbarescos do Piemonte são “varietais” de uvas temperamentais, caprichosas, que dificilmente se dão bem em outros lugares, que não os de suas origens. Querem mais semelhanças? A grande quantidade de produtores com pequenas propriedades, a valorização do terroir e seus Crus, às vezes compartilhados por mais de um produtor, e a necessidade imperiosa na hora da compra de vinho de qualidade de se ter o conhecimento de quem o faz. Do ponto de vista de análise organoléptica, quando jovens, podem sim ter muitas diferenças, porém, ao envelhecerem as diferenças atenuam.
• Domaine Dujac Charmes-Chambertin GC 1990
O Domaine Dujac, fundado em 1968 por Jacques Seysses, é recente para os moldes de Borgonha, porém goza de igual fama de muitas “velhinhas famosas”. Segundo Clive Coates, um dos críticos mais abalizados da região: “Este é um dos grandes domaines da Borgonha”. O estilo Dujac desde seu início foi o de produzir vinhos que tivessem os adjetivos: elegância, pureza, personalidade e equilíbrio. Vinhos perfumados, maduros e muito frescos.
O Domaine Dujac Charmes-Chambertin Grand Cru 1990 é um marco ao charme, finesse e elegância! Aromas de um excepcional Borgonha que envelheceu com nobreza e, como lembrou uma amiga, muita pitanga (fruta brasileira, originária das regiões de Mata Atlântica), igual à que tenho em meu jardim. Na boca, aquele gosto de “quero mais”. Coates deu 18 pontos em 20, por que não a pontuação máxima? Eu, com certeza, daria. Ganhou de “goleada” como o melhor do embate, assim como entre todos na preferência.
• Luciano Sandrone Cannubi Boschis 1990
Acessíveis quando jovens, os Barolos de Sandrone também envelhecem muito bem, como observamos com o vinho de prova. Parecia uma “criança” em seus 27 anos. Cannubi Boschis, de Luciano Sandrone, é um dos vinhos de referência no Piemonte. Suas parcelas estão na vinha de Cannubi Boschis (também conhecida como Monghisolfo), em um trecho de sete hectares que fica na mesma encosta do célebre vinhedo Cannubi. Sandrone tem três parcelas em CB, separadas, com características ligeiramente diferentes e, por isso, colhe as uvas e as vinifica de modo distinto.
Cor ainda escura, explosão ao nariz de cerejas escuras, mentol, algo doce. No paladar, se mostra potente, ainda com grande potencial de guarda. Em suma, um vinho rico e concentrado que representa quase a perfeição de um Barolo moderno. “O Cannubi Boschis de 1990 continua a ser um vinho de referência para a casa Sandrone (e o Piemonte como um todo)”, diz Antonio Galloni, dando-lhe 96/100 (jul 2013).
Segundo round: Côte Rôtie X Châteuneuf-du-Pape
Agora temos dois “pugilistas” da mesma região, Vale do Rône, um do norte, defendendo a Syrah e outro do sul, com a bandeira da Grenache. Na verdade, os vinhos da prova não são 100% das uvas citadas. O La Turque tem mesclado à Syrah cerca de 10% de uma uva branca da região, a Viognier, e o Les Cailloux Cuvée Centenaire tem, além da Grenache (80-85%) de vinhas centenárias, as uvas Syrah e Mourvèdre de vinhas jovens.
• Guigal Côte Rôtie La Turque 1990
Nas últimas décadas, Marcel Guigal abiscoitou enorme fama com seus crus de Côte-Rôtie: La Landonne, La Mouline e La Turque. Os “La-La-Las” de Guigal tornaram-se caros quando 10 anos depois de lançados, Robert Parker entrou em cena, dando-lhes muitas vezes a nota máxima, e aí os preços dispararam. O La Turque é um exemplo da riqueza de um Syrah em seu habitat natural nessas encostas de gnaisse arenosa ao sul de Lyon.
O Guigal La Turque 1990 nos mostrou de uma riqueza de geleia de frutas ímpar e um toque mineral interessante, porém, parece que estava faltando frescor, por isso explica a razão de não ter tido a preferência entre os participantes com “mais estrada” no mundo de Baco. Parker deu-lhe 98 pontos e enfatizou sua “personalidade harmoniosa, a sua textura aveludada”, afirmando se tratar de um vinho inesquecível (jul 1996).
• Les Cailloux (Lucien et Andre Brunel) Châteauneuf-du-Pape Cuvée Centenaire 1990
O Châteauneuf-du Pape (CHDP) Les Cailloux Cuvée Centenaire é um vinho excepcional, produzido apenas em grandes safras. Para celebrar o centenário da vinícola, Lucien e André resolveram fazer em 1989 uma cuvée de exceção com uvas da parcela mais bela do vinhedo centenário de Grenache. Quase totalmente com essa uva, o Cuvée Centenaire exprime a quintessência da Grenache.
Na prova, à medida que ia evoluindo na taça o Les Cailloux mostrava mais complexidade de aromas e sabores, em camadas, porém o que chamou a atenção foi o seu longo final de boca, quase interminável. Magnífico! Parker, o pontuou com 100 pontos, dizendo que “combina o melhor de CHDP, com o seu floral, e a terrosidade de um Borgonha Grand Cru” (jan 2003). Ganhou na preferência por pouco do La Turque.
Terceiro round: Bordeaux X Castilla y León
Para alguns críticos de vinhos, Ribera del Duero – que faz parte de Castilla y León – seria o Bordeaux da Espanha e, com certeza, o Vega Sicilia foi o responsável por inserir esta região no mapa do vinho mundial. Por outro lado, temos o Château Lynch Bages, um Cinquième Cru, com fama e preço dos de classificação superior. E é bom lembrar que em algumas grandes safras (1961, 1982, 1990, etc) nem sempre os melhores da safra estavam entre os Premiers Grands Crus Classés (PGCC) do Médoc, topo da pirâmide da célebre classificação de 1855. E este fantástico vinho da sub-região de Pauillac, do pequeno povoado de Bages, foi um dos grandes da safra de 1990, junto com o Château Montrose, de Saint Estephè, também fora dos PGCC, porém considerado por muitos um super segundo.
• Château Lynch Bages 1990
Um dos grandes de Pauillac destinados àqueles amantes de Bordeaux que tenham paciência, pois em safras muito boas, às vezes pede 15 a 20 anos para mostrar o seu melhor, evoluindo bem por 40 anos ou mais. Um vinho que envelhece muito bem. Concentração, poder, porém com um charme especial e estilo entre os tradicionais e modernos.
Particularmente, tenho lembranças mais significativas de Bordeaux da safra ’82, que da de ’90, e posso dizer que já provei bastante vinhos bordaleses dessas duas safras, talvez, mais de ’90, porém só dois vinhos ‘90 conseguiram tocar meu coração de maneira intensa, o Montrose e o Lynch Bages. Sedutor ao extremo em toda a prova. Segundo Parker, o Lynch Bages 1990 exibe “aromas de groselhas negras, madeira de cedro, ervas e especiarias, ao paladar é encorpado, voluptuoso, rico, intenso e de uma pureza incrível” (99/100, agosto 2011).
• Vega Sicilia Único 1990
Vinícola ícone de Ribera del Duero e pioneira no uso de variedades de uvas trazidas de Bordeaux (Cabernet Sauvignon, Merlot e Malbec) para adicionar às castas locais Tinto Fino, Garnacha e Albillo. O Único é produzido só em grandes safras. Vega Sicilia mostra riqueza em fruta ímpar. Usualmente passa por longo período de “crianza” e, dependendo da safra, pode ser mais de 10 anos em tonéis enormes e barricas francesas e americanas tanto novas como usadas. A partir de 1982 o tempo de crianza diminuiu nos tonéis (5 a 6 anos) e aumentou na garrafa antes de ir ao mercado.
O Vega Sicilia 1990 durante a prova mostrou-se com aquela elegância de sempre, perfumado e vigoroso. Porém, apostei em termos de preferência no Lynch e perdi junto com os votos de mais dois participantes. Perdemos por 5 a 3. Segundo Neal Martin, da equipe de Parker, o Vega Sicilia Único 1990 seria “um Cabernet Franc-like, portanto, parecido com um da margem direita” (96/100, agos 2012). Um blend de Tinto Fino (80%) e Cabernet Sauvignon (20%). Fantástico!
Finalizando, sei que estávamos diante de vinhos de estilos diferentes, entretanto, nada impediria que provocássemos uma disputa no quesito preferência entre os presentes. Santé! Salute! Salud!
Gerson Lopes é médico mineiro com atuação em sexologia e acredita que a vida é o melhor afrodisíaco. Criador do site Vinho e Sexualidade
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